Enganar ou deixar-se enganar?
Alexandra Santos
Blog criado pelos primeiros alunos do 4º ano da área de Cinema da licenciatura em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no âmbito do seminário anual dedicado ao Film Noir, orientado pelo Prof. Abílio Hernandez.
The Maltese Falcon é comummente aceite como sendo o primeiro film noir da história do cinema. É com ele que nasce um paradigma seguido por vários outros realizadores. Ainda hoje podemos ver reminiscências do noir.
Com Boggart, nasce a figura-tipo do detective que procura resolver um caso misterioso, influenciado por uma, ainda que ténue, femme fatale (Mary Astor), aparentemente ingénua mas que acaba por envolvê-lo tanto no caso como com ela. Eventualmente chegar-se-á a uma traição e a um ajuste de contas final que deixará o espectador respirar, finalmente, de alívio. No entanto, até então, nunca nenhum filme mostrara tão explicitamente homicídios brutais, tensão sexual, etc. Apesar de dar uma certa continuidade ao filme de gangsters e ao policial, o noir pode ser considerado uma categoria fílmica mais “dura” tanto por aquilo que mostra como pelo que sugere.
Iconograficamente é inovador. De repente, tudo e todos têm uma sombra! A iluminação é feita de modo a que longas sombras, tanto de objectos como de pessoas, sejam projectadas, o chiaroscuro é implementado. Os ângulos da câmara variam bastante mais, havendo alguma preferência pelos picados e contra-picados. Também temos exemplo de um plano subjectivo de Sam Spade.
Em termos de texto, os diálogos, sem floreados, incisivos, por vezes de duplo sentido, quase se sobrepõem uns aos outros a um ritmo vertiginoso.
Baseado numa obra de Dashiel Hammet, The Maltese Falcon não distingue claramente o bem do mal, como se do antagonismo entre o negro e o branco surgisse, muito simplesmente, o cinzento.
No entanto, a voz-over é ainda inexistente e a femme fatale, afinal, necessita de maior projecção.
Cláudia Morais
Os textos teóricos produzidos ao longo dos anos sobre o film noir têm-se centrado num conjunto de traços considerados essenciais para a identificação desta categoria fílmica. Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito de chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a emergência de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção de uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina do protagonista o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino.
Estruturado por uma teia de ilusões e de embustes que inevitavelmente desembocam na morte, o espaço profundamente problemático e perturbador do film noir encontra na labiríntica sala dos espelhos de The Lady From Shangai (de novo a presença incontornável de Welles) a representação ideal de um mundo assombrado pelos infinitos reflexos de figuras esquivas, ambíguas e dilaceradas. São elas, verdadeiramente, mais do que qualquer outro elemento, que fazem do noir um filme de morte.
Apesar da convergência crítica sobre os aspectos acima enunciados, a controvérsia está sempre presente na discussão do film noir, designadamente quanto à sua classificação como período, estilo ou género. O entendimento do noir como um período específico da história do cinema, balizado pelos anos de 1941 e 1958, foi sendo abandonado à medida que, a partir da segunda metade da década de 60, obras como Harper (Jack Smight, 1966), Point Blank (John Boorman, 1967), Klute (Alan J. Pakula, 1971), Chinatown (Roman Polanski, 1974) ou Farewell, My Lovely (Dick Richards, 1975) recuperavam alguns dos traços mais distintivos da categoria. A continuidade dessas referências e a evolução do seu tratamento fílmico justificam o aparecimento, na crítica cinematográfica, da expressão neo-noir para classificar alguns filmes dos anos 80 e 90, como Blade Runner e Black Rain (Ridley Scott, 1982 e 1989), House of Games (David Mamet, 1987), Reservoir Dogs (Quentin Tarantino, 1992), The Usual Suspects (Bryan Singer, 1995) e Seven (David Fincher, 1975), entre outros.
Por outro lado, o noir não pode ser considerado apenas como um estilo se, por estilo, entendermos o uso repetido e claro de técnicas fílmicas que se tornam características de um grupo de filmes, porque, por si sós, ou mesmo combinados entre si, diversos traços estilísticos identificados com a categoria (o desequilíbrio da composição, o efeito chiaroscuro da iluminação, etc.) não são na verdade exclusivos do noir ou sequer do filme policial.
Do mesmo modo, o conceito de género, entendido como um tipo de filmes que o espectador reconhece pelas suas convenções narrativas familiares, não parece suficientemente maleável para definir um corpus em que a transgressão das fronteiras genéricas assume um carácter mais profundo e mais essencial para a sua compreensão do que aquele que ocorre no western, no musical ou no filme de terror. Será por isso mais rigoroso considerar o noir como uma categoria essencialmente transgenérica, capaz de incluir, no seu vasto e variado cânone, filmes de gangsters como High Sierra (Raoul Walsh, 1941) e The Killers (Robert Siodmak, 1946), melodramas policiais como Mildred Pierce (Michael Curtiz, 1945), histórias de crimes passionais e psicologia criminal como The Postman Always Rings Twice (Tay Garnett, 1946), thrillers com vocação de documentário social como Crossfire (Edward Dmytryk, 1947), e até a negrura de westerns como Pursued (Raoul Walsh, 1947) e Rancho Notorious (Fritz Lang, 1952).
Com esta sua condição essencialmente multímoda e transgenérica, o noir do período clássico entre 1941 e 1958 identifica-se com uma prática fílmica capaz de expor e subverter formas sociais de dominação estruturantes do quotidiano da sociedade americana do pós-guerra, articulando deste modo uma consciência crítica do mundo contemporâneo. Esta perspectiva pressupõe que se veja o noir não tanto como mero efeito das contradições e distorções que atravessam a modernidade em geral e a sociedade americana em particular, mas sobretudo enquanto sintoma de alguns dos respectivos mitos culturais dominantes, manifestado nas próprias contradições e na distorção estilística, discursiva, temática e transgenérica, que estrutura o vasto conjunto de filmes a que atribuímos a classificação de noir.
A origem e o desenvolvimento do film noir estão inequivocamente associados à evolução da sociedade americana e da sua indústria cinematográfica na fase que se seguiu à depressão e, sobretudo, no período da segunda guerra mundial e respectivas sequelas. Quando, em 1946, Nino Frank utilizou pela primeira a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser aceite pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, e em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do cinema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e no estilístico. Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon, de John Huston (1941), e Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger, e The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.
Para a generalidade dos críticos o corpus do período clássico do film noir começa justamente com The Maltese Falcon e acaba com Touch of Evil, de Orson Welles (1958). Mas é outro filme de 1941, não incluído no cânone noir – o famoso Citizen Kane, de Welles – que introduz no cinema americano o rebuscamento estilístico e a complexidade narrativa que irão tornar-se duas das marcas identificadoras da categoria. Com Touch of Evil, esse rebuscamento tornar-se-á perversamente excessivo, representando o filme, nesse seu assumido excesso, a degeneração e a morte de um dos herois existenciais mais caros ao noir, o “hard-boiled detective”. O que – facto interessante e poucas vezes salientado – nos deixa esta categoria fílmica histórica e esteticamente situada entre duas obras-primas de Orson Welles. E situado também, na sua fase mais marcante, em duas décadas, a de 40 e a de 50,
Abílio Hernandez
As primeiras imagens do filme são de uma estrada molhada de Los Angeles, quase deserta nas primeiras horas da manhã, que Walter Neff (Fred MacMurray), um vendedor de seguros tornado assassino, percorre a grande velocidade desrespeitando várias regras básicas do trânsito entrando quase em colisão com outro veículo desavisado. Visivelmente perturbado, e ao que parece ferido, dirige-se ao seu escritório onde contará em flashback os sinuosos caminhos que o levaram até este ponto sem retorno – assim se inaugura o depois típico modelo do herói introspectivo, em desespero, fumando...
A femme fatale, Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), é também muito cedo caracterizada como tal. A primeira visão que temos dela é num plano em contra-picado em que ela aparece envolta apenas numa toalha, apresentando-se assim ao protagonista sem qualquer pudor, pelo contrário, em tom de sedutor desafio. Pelo menos é assim que Walter Neff vê e entende a situação.
É interessante notar que todas as femmes fatales são apresentadas e descritas por homens (quer pelos protagonistas dentro do filme, quer pelos realizadores) que assinalam e projectam nelas, inevitavelmente, os seus receios e desejos. O ponto de vista é sempre o masculino. Não tento com isto pôr em causa a maior ou menor veracidade dos relatos, apenas procuro acertar que elas, as femmes fatales, não são mais uma personagem autónoma do que uma projecção masculina. O despertar da instabilidade acontece no inconsciente da personagem masculina, e a narrativa performa os caminhos abstractos e não lineares da mudança ocorrida. É também a mise-en-scène, os cenários (como a mansão gradeada pela luz que entra pelas persianas que deixa ver o ambiente sujo e claustrofóbico em que vive Mrs. Dietrichson) que metaforicamente a mostram sempre mediada, como predadora enjaulada, que a fecham na categoria ideológica da mulher como figura dos conceitos nela germanos: “desejo” e “morte”.
A mulher é neste filme vista como figura dupla (de resto, esta ideia do duplo joga de forma inteligente com vários elementos ao longo do filme, começando obviamente pelo título). Uma dupla promessa de preenchimento e de eterna danação. No final o impasse é resolvido pela consciência que Walter adquire de que nunca terá Phyllis, nem terá mais nada.
O filme começa com uma legenda que conta a história do falcão maltês, enquanto vão surgindo planos do ano de 1941 de São Francisco (Golden Gate Bridge). Depois somos levados pela janela de um escritório que tem escrito “Spade and Archer” até ao detective Spade que enrola um cigarro. A secretária Effie Perine (Lee Patrick) anuncia um novo caso e a mulher fatal, Ruth Wonderly (Mary Astor), que procura a irmã desaparecida e que supostamente está na companhia de Floyd Thursby provavelmente
Em 1941, o mundo estava
O filme noir é descendente directo do filme de gangsters dos anos 30, que por sua vez é filho de uma realidade marcada pela crise económica e pelo aparecimento do crime organizado, durante a instituição da Lei Seca, e que imediatamente após a sua revogação intensificou e diversificou as suas actividades. O crime tornou-se um meio rápido de ascensão social. A moral perdia a sua rigidez e desintegrava-se, numa sociedade onde as antigas leis políticas e económicas não garantiam mais um futuro promissor.
O crime surge, nem tanto como o resultado de uma revolta contra as condições de um sistema que marginaliza e oprime, mas como tentativa de preencher vidas tediosas e opacas. A violência é a válvula de escape, o termómetro social, forma que seres embrutecidos encontram para perseguir os seus interesses, reivindicar os seus direitos ou manifestarem a sua inadaptação ao mundo.
Retrato de seu tempo, o filme noir mostra-nos um mundo de luz e sombras, onde a moral e a divisão simplista entre bons e maus cede espaço à decadência e ambiguidade das personagens. Um mundo em que a desilusão e a incerteza se embrenham nos alicerces de uma sociedade, que faz do sucesso uma cultura e do individualismo uma religião.
O filme noir é um estilo, uma maneira de se filmar, nitidamente influenciada pelo Expressionismo alemão, pelo Realismo poético francês e pelo romance policial. Temos a figura do detective duro e solitário que encontra um sentindo para a existência no individualismo e no exercício de sua profissão, sobrevivendo como um pária do mundo exterior, e mantendo uma ilusória sanidade mental às custas da indiferença e do "não envolver-se".
Apesar de o argumento de The Maltese Falcon ser uma adaptação literária (do livro homónimo de Dashiell Hammett) Huston não ficou totalmente limitado pelos detalhes do argumento e filmou algumas cenas fugindo à obra original.
A contrastada fotografia a preto-e-branco, ângulos anti-convencionais, uso recorrente de picados e contra-picados, fontes isoladas de luz, profundidade de campo, o ângulo à altura do olho. Os planos com pouca luz, criativos e descritivos, tornam a fotografia uma das maiores qualidades do filme. Huston usa imagens do tecto como forma de criar imagens de confinamento, e os espaços do filme, excepto nas cenas do hotel e do cais, são quase claustrofóbicos, sugerindo que a investigação de Spade é extremamente limitada.
Muitas vezes são utilizados, de uma forma muito inteligente, ângulos fora do comum para enfatizar a natureza das personagens. Algumas das cenas mais impressionantes tecnicamente são com the Fat Man (Sidney Greenstreet), especialmente a cena em que este explica muito calmamente a história do falcão a Spade enquanto espera que o sonífero que pôs na bebida deste faça efeito. Gutman está sentado enquanto conta a história e a câmara colocada perto do chão mostra-o num plano em contra-picado, para que o seu enorme tamanho preencha todo o ecrã, dominando a cena completamente, investindo-o de uma grande autoridade. A sua enorme barriga cruzada pela corrente de ouro de um relógio de bolso fica marcada na mente, reforçando simbolicamente a enormidade da obscura história e conspiração que cerca o falcão.
Também as cenas que envolvem Brigid (Mary Astor) são visualmente muito significativas, quase todas elas sugerem a prisão: ela aparece com um pijamas às riscas, a mobília no quarto é às riscas e os raios de luz que atravessam as persianas sugerem as grades de uma cela, assim como as grades do elevador no fim do filme.
A ideia que temos neste filme é que Huston trabalhou cuidadosamente cada uma das cenas de forma a que as imagens, a acção e o diálogo se fundissem na perfeição. O realizador não foi menos cuidadoso com o desenvolvimento do filme, que começa lentamente mas que a certo momento ganha velocidade assim que a narrativa se começa a desenrolar. É a incisiva montagem de Huston que aumenta gradualmente a velocidade do filme. Também a banda sonora é utilizada de forma cuidada, completando uma ou outra cena.
Ângela Cristina Menezes
Considerado como um dos primeiros filmes noir, The Maltese Falcon dá forma, através de inúmeros exemplos, a esta expressão que se tornou num género.
Assim, logo na sequência inicial é bem visível o contraste entre a luz e a sombra no gabinete de Sam, mesmo com a luz do dia as sombras provocadas pelos os estores estão presentes.
Por outro lado, o quarto de Sam está às escuras e somente uma janela mostra a luz do exterior. Ao atender o telefone apenas ouvimos a sua voz, o seu rosto só aparece quando acende a luz do candeeiro.
De facto, são os candeeiros dispostos estrategicamente pelo cenário que dão luz e sombra em cada cena, sendo inserido em cada plano o tecto do apartamento de Sam ou de Brigid, pois é ele que reflecte essa mesma luz e sombra.
Tudo é contrastante no filme, até a música, que por vezes é lenta e suave, se torna estridente nos momentos chave da narrativa. Até mesmo o vestuário das personagens reflecte a dualidade luz/sombra, pois todas usam uma peça de roupa clara e outra escura.
Igualmente importantes são os planos usados no filme que em muito deixam transparecer a personalidade e a situação de cada personagem; como os planos de conjunto, os planos médios e subjectivos. Outro exemplo, é o campo e contra-campo, em que no mesmo plano está sempre uma personagem de frente e as outras de costas e vice-versa, e sempre de ângulos diferentes; ou até mesmo o plano contra-picado de Gutman no quarto de hotel. No entanto, na última sequência do filme todas as personagens são filmadas de igual forma, pois todos estão na mesma situação.
Na verdade, as personagens aparecem-nos facilmente caracterizadas pelos planos e pelo próprio ambiente que as rodeia. Assim, Sam apresenta-se como um homem frio, insensível, arrogante que despreza qualquer intenção de sedução por parte da mulher, neste caso Brigid, mulher sedutora e mentirosa que usa a fragilidade como seu aliado.
Ao longo de uma narrativa fluida, toda a história converge num ponto: o dinheiro, que desperta a ganância desmedida em personagens desde logo condenadas, servindo-se de esquemas e enganos para atingirem objectivos pessoais.
São a verdade e a mentira que juntas constroem as incertezas deste género cinematográfico, são elas as metáforas da luz e da sombra, da noite e do dia, são elas que quebram todo e qualquer sonho que pesa e é feito de chumbo.
Anaísa Rato – Est. Artísticos, 4º Ano