segunda-feira, dezembro 04, 2006

Período, estilo ou género? a categorização histórico-estética do noir


Os textos teóricos produzidos ao longo dos anos sobre o film noir têm-se centrado num conjunto de traços considerados essenciais para a identificação desta categoria fílmica. Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito de chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a emergência de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção de uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina do protagonista o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino.

Estruturado por uma teia de ilusões e de embustes que inevitavelmente desembocam na morte, o espaço profundamente problemático e perturbador do film noir encontra na labiríntica sala dos espelhos de The Lady From Shangai (de novo a presença incontornável de Welles) a representação ideal de um mundo assombrado pelos infinitos reflexos de figuras esquivas, ambíguas e dilaceradas. São elas, verdadeiramente, mais do que qualquer outro elemento, que fazem do noir um filme de morte.

Apesar da convergência crítica sobre os aspectos acima enunciados, a controvérsia está sempre presente na discussão do film noir, designadamente quanto à sua classificação como período, estilo ou género. O entendimento do noir como um período específico da história do cinema, balizado pelos anos de 1941 e 1958, foi sendo abandonado à medida que, a partir da segunda metade da década de 60, obras como Harper (Jack Smight, 1966), Point Blank (John Boorman, 1967), Klute (Alan J. Pakula, 1971), Chinatown (Roman Polanski, 1974) ou Farewell, My Lovely (Dick Richards, 1975) recuperavam alguns dos traços mais distintivos da categoria. A continuidade dessas referências e a evolução do seu tratamento fílmico justificam o aparecimento, na crítica cinematográfica, da expressão neo-noir para classificar alguns filmes dos anos 80 e 90, como Blade Runner e Black Rain (Ridley Scott, 1982 e 1989), House of Games (David Mamet, 1987), Reservoir Dogs (Quentin Tarantino, 1992), The Usual Suspects (Bryan Singer, 1995) e Seven (David Fincher, 1975), entre outros.

Por outro lado, o noir não pode ser considerado apenas como um estilo se, por estilo, entendermos o uso repetido e claro de técnicas fílmicas que se tornam características de um grupo de filmes, porque, por si sós, ou mesmo combinados entre si, diversos traços estilísticos identificados com a categoria (o desequilíbrio da composição, o efeito chiaroscuro da iluminação, etc.) não são na verdade exclusivos do noir ou sequer do filme policial.

Do mesmo modo, o conceito de género, entendido como um tipo de filmes que o espectador reconhece pelas suas convenções narrativas familiares, não parece suficientemente maleável para definir um corpus em que a transgressão das fronteiras genéricas assume um carácter mais profundo e mais essencial para a sua compreensão do que aquele que ocorre no western, no musical ou no filme de terror. Será por isso mais rigoroso considerar o noir como uma categoria essencialmente transgenérica, capaz de incluir, no seu vasto e variado cânone, filmes de gangsters como High Sierra (Raoul Walsh, 1941) e The Killers (Robert Siodmak, 1946), melodramas policiais como Mildred Pierce (Michael Curtiz, 1945), histórias de crimes passionais e psicologia criminal como The Postman Always Rings Twice (Tay Garnett, 1946), thrillers com vocação de documentário social como Crossfire (Edward Dmytryk, 1947), e até a negrura de westerns como Pursued (Raoul Walsh, 1947) e Rancho Notorious (Fritz Lang, 1952).

Com esta sua condição essencialmente multímoda e transgenérica, o noir do período clássico entre 1941 e 1958 identifica-se com uma prática fílmica capaz de expor e subverter formas sociais de dominação estruturantes do quotidiano da sociedade americana do pós-guerra, articulando deste modo uma consciência crítica do mundo contemporâneo. Esta perspectiva pressupõe que se veja o noir não tanto como mero efeito das contradições e distorções que atravessam a modernidade em geral e a sociedade americana em particular, mas sobretudo enquanto sintoma de alguns dos respectivos mitos culturais dominantes, manifestado nas próprias contradições e na distorção estilística, discursiva, temática e transgenérica, que estrutura o vasto conjunto de filmes a que atribuímos a classificação de noir.

Abílio Hernandez