sábado, abril 21, 2007

"They Live By Night"

É num carro a alta velocidade no meio do campo que entramos no universo de "They Live by Night". Adaptado do romance de Edward Anderson, "Thieves Like Us", este primeiro filme de Niholas Ray pode-se considerar como uma entrada suave e sentimental no cânone do noir clássico. No entanto, chega a ser interessante, senão contraditório quanto à forma de filme noir.
Na verdade, as convenções estilísticas estão presentes no contraste luz/sombra, planos fechados ou apertados sugerindo uma certa asfixia, um beco sem saída, nos lugares em atmoferas nocturnas. Contudo, o filme é igualmente caracterizado por elementos não-noir.
Enquanto que outros filmes noir têm como espaço primordial a cidade, aqui encontramos um ambiente rural - a quinta, casa na montanha, as estradas em pleno campo. Ainda assim, observamos um simpático retrato dos dois amantes fora da lei. Porque se a narrativa é estruturada em torno dos três foragidos, o filme acaba por desenvolver de forma coerente o romance entre Keechie e Bowie.
De facto, os casais típicos do noir usam a sua carga sexual para se servirem um do outro (ex: "Double Indemnity"), porém o companheirismo de Keechie e Bowie é terno, cheio de um idealismo romântico frequentemente associado ao melodrama.
Enqunto os protagonistas do noir são vividos, cínicos, Bowie não sabe como falar com uma mulher, apenas quer agarrar a mão de um rapariga no cinema. Apesar se sofrer uma mudança ao longo do filme, Keechie não é sofisticada, nem independente, não é a femme fatale, pelo contrário, é a mulher redentora, é a mulher simples e solitária - a mesma que encontramos em "Out of the Past" - ela não é como as outras raparigas ("I'm not like other girls"), as raparigas do noir.
É a ingenuidade e o desejo de uma vida "normal" que os distancia do casal típico do noir, aproximando-os já de casais presentes nos filmes que se seguiriam.
"They Live By Night" pode ser então considerado um romantic noir, mas também um roadmovie, onde o carro tem um papel fundamental não só como objecto no espaço, mas também com uma poderosa divisão de planos. Na verdade, é o interior do carro que atenua os interiores dominados por restritas delineações de portas, janelas, luz e sombra. O assalto ao banco, de dia, é quase inteiramente filmado pela perspectiva de Bowie na janela do carro.
É desta forma que "They Live By Night"nos remete para filmes ainda do noir, mas também para filmes posteriores, como "Bonnie and Clyde", sugerindo uma mudança, os primeiros passos de um novo cinema que estava para vir.

Anaísa Rato

O sonho quebrado

Considerado como um dos primeiros filmes noir, "The Maltese Falcon" dá forma, através de inúmeros exemplos, a esta expressão que se tornou num género.
Assim, logo na sequência inicial é bem visível o contraste entre a luz e a sombra no gabinete de Sam, mesmo com a luz do dia as sombras provocadas pelos estores estão presentes.
Por outro lado, o quarto de Sam está às escuras somente uma janela mostra a luz do exterior. Ao atender o telefone apenas ouvimos a sua voz, o seu rosto só aparece quando acende a luz do candeeiro.
De facto, são os candeeiros dispostos estrategicamente pelo cenário que dão luz e sombra em cada cena, sendo inserido em cada plano o tecto do apartamento de Sam ou de Brigid, pois é ele que reflecte essa mesma luz e sombra.
Tudo é contrastante no filme, até a música que por vezes é lenta e suave, se torna estridente nos momentos chave da narrativa. Até mesmo o vestuário das personagens reflecte a dualidade luz/sombra, pois todas usam uma peça de roupa clara e outra escura.
Igualmente importantes são os planos usados no filme que, em muito deixam transparecer a personalidade e a situação de cada personagem; como os planos de conjunto, os planos médios e subjectivos. Outro exemplo, é o campo contra-campo, em que no mesmo plano está sempre uma personagem de frente e as outras costas e vice-versa, e sempre de ângulos diferentes; ou até mesmo o plano contra-picado de Gutman no quarto de hotel, mostra todo o seu altruísmo. No entanto, na última sequência do filme todas as personagens são filmadas de igual forma, pois todos estão na mesma situação.
Na verdade, as personagens aparecem-nos facilmente caracterizadas pelos planos e pelo próprio ambiente que as rodeia. Assim, Sam apresenta-se como um homem frio, insensível, arrogante que despreza qualquer intenção de sedução por parte da mulher, neste caso Brigid, mulher sedutora e mentirosa que usa a fragilidade como seu aliado.
Ao longo de uma narrativa fluida, toda a história converge num ponto: o dinheiro, que desperta a ganância desmedida em personagens desde logo condenadas, servindo-se de esquemas e enganos para atingirem objectivos pessoais.
É a verdade e a mentira que juntas constroem as incertezas deste género cinematográfico, são elas as metáforas da luz e da sombra, da noite e do dia, são elas que quebram todo e qualquer sonho que pesa e é feito de chumbo.

Anaísa Rato

quinta-feira, abril 19, 2007

Double Indemnity (1944)

“Common people doing bad things to get what they want”


Por muitos considerado o primeiro noir autêntico, Double Indemnity (1944) possui, de facto, características estéticas e estilísticas mais marcantes quando comparado com o seu antecessor The Maltese Falcon (1941). É com Double Indemnity que o austríaco Billy Wilder alcança reconhecimento, tendo sido nomeado para 7 Óscares, entre eles Melhor Realizador e Melhor Filme.
A visão desta película é a de um mundo pessimista. Desde os primeiros momentos do filme, com um homem de sobretudo (Neff) a cambalear, sabemos que esta é uma história condenada. E assim que vemos uma pequena mancha de sangue no casaco de Neff e ouvimos da sua boca uma confissão ofegante, temos a confirmação necessária. “I killed him for money… and for a woman. I didn’t get the money. And I didn’t get the woman.” – deste modo se inicia o longo flashback que constitui todo o filme. É com a voz over de Neff, cansada e em sufoco pelo esforço de falar com uma bala alojada no peito, que somos guiados na sua subjectividade.
Neff e Phyllis conhecem-se, interessam-se um pelo outro, “interessam-se” em seguros de vida e ao terceiro encontro decidem matar o marido de Phyllis. Será por dinheiro? Por amor? Ou porque vivem ambos aborrecidos das vidas que levam? Não se sabe ao certo. As primeiras hipóteses são meros ensaios de resposta às perguntas pois apenas isso nos é permitido retirar desta intriga.
Largando o arquétipo do hard-boiled detective que Boggart implementou, Neff é uma personagem fraca que se deixa enganar pelos lindos olhos de Phyllis. Ambos partilham uma certa frieza que os faz personagens por quem é pouco provável nutrir-se qualquer sentimento. O espectador queda-se praticamente neutro quando Keys, patrão e figura paterna de Neff, está na eminência de desvendar o crime. Talvez sintamos o medo do desapontamento que Keys irá sofrer se descobrir a verdade. Ainda que os protagonistas sejam, aos nossos olhos, personagens “desumanas”, existe um fundo pleno de outras mais humanas. Keys é, claro está, uma delas. E talvez Lola, a enteada de Phyllis, preocupada e receosa, também possa fazer parte desse leque. Serão estas as personagens “pilar-moral” que acompanham Neff e Phyllis.
Talvez impelidos mais pela “vontade” de cometerem um crime do que por qualquer outra razão, o par de protagonistas cai na rede de Wilder. Como Roger Ebert afirma “Ele [Wilder] não está interessado nas mesmas coisas que interessam às personagens. Pretende saber o que lhes acontece depois de fazerem aquilo que pensam ser tão importante. Ele não quer verdade mas consequências.”
[1] E é justamente isso que nos mostra. Os motivos que os levaram a cometer o crime pouco importam. Importa sim o modo como reagem ao resultado dos seus actos, aqueles pequenos detalhes que, na ânsia de cumprir um objectivo, foram ignorados e que agora tomam proporções gigantescas pondo em risco todo o plano.
Então, assistimos à queda de ambas as personagens, vemo-las sofrer as consequências, o modo como se tentam defender, escapulir à verdade, esconder, ver como o remorso as consome e a moral fala mais alto, como o medo é instalado. Possivelmente será esse sofrimento a única forma de os converter, no final do filme, em seres de “sangue quente”. Ainda assim, Neff ganha densidade e complexidade pela relação que estabelece com o seu patrão, Keys. O sentimento mais genuíno em todo o filme é o da relação de ambos, uma relação pai-filho, com uma figura paternal exigente e dura, mas profundamente terna. No outro extremo, a relação amorosa de Phyllis com Neff é fria, sem qualquer manifestação de carinho. É uma relação utilitária que apenas serve um propósito.
Ainda que não vejamos claramente a cidade como elemento labiríntico e “típico” do noir, esse elemento é engenhosamente substituído pelo amplo espaço ocupado por secretárias dos escritórios da companhia onde Neff trabalha. Mesas de madeira alinhadas criam corredores, como se de ruas se tratasse. De facto, as imagens do exterior são escassas em detrimento dos espaços interiores, onde se localiza a grande parte da acção. Aí existe um estudo detalhado da projecção de sombras, do contraste e dos jogos de luz que vão criando ambientes em tudo apropriados a cada situação. O exemplo mais notório é o de uma das cenas finais da película (Neff e Phyllis encontram-se ambos em casa de Phyllis) em que alongadas sombras correspondentes às persianas entreabertas das janelas se projectam na face dos protagonistas, criando a ilusão de estarem aprisionados por detrás de grades.
Ainda que baseado num romance de James M. Cain, Wilder, também como argumentista de Double Indemnity, aprimorou os diálogos e fez deles pequenas preciosidades que balançam entre o mordaz e irónico e o altamente sugestivo.

NEFF
Why didn't you shoot, baby?


Phyllis puts her arms around him in complete surrender.


NEFF
Don't tell me it's because you've been in love with me all this time.


PHYLLIS
No. I never loved you, Walter. Not you, or anybody else. I'm rotten to the heart. I used you, just as you said. That's all you ever meant to me -- until a minute ago. I didn't think anything like that could ever happen to me.


NEFF
I'm sorry, baby. I'm not buying.


PHYLLIS
I'm not asking you to buy. Just hold me close.


Neff draws her close to him. She reaches up to his face andkisses him on the lips. As she comes out of the kiss thereis realization in her eyes that this is the final moment.


NEFF
Goodbye, baby.


Out of the shot the gun explodes once, twice. Phyllis quiversin his arms. Her eyes fill with tears. Her head falls limpagainst his shoulder. Slowly he lifts her and carries her tothe davenport. He lays her down on it carefully, almosttenderly. The moonlight coming in at the French doors shineson the anklet. He looks at it for the last time and slowlyturns away. As he does so, he puts his hand inside his coatand it comes out with blood on it. Only then is it apparentthat Phyllis' shot actually did hit him. He looks at theblood on his fingers with a dazed expression and quicklygoes out of the room, the way he came.


A “Santa Trindade” Assassínio-Traição-Destruição do noir afirma-se definitivamente com Double Indemnity. Outro elemento a seu favor é o facto de não se fixar apenas no enredo, na acção com um princípio, meio e fim, na manipulação fácil de personagens planas. Wilder atribui valor às relações humanas que a intriga cria e isso é uma proposta menos niilista quando comparada com outros filmes desta mesma categoria.
Por tudo o que foi referido (e por tudo o que ainda falta referir), afirmar que Double Indemnity é o noir mais noir da História do Cinema deixou já de ser uma opinião meramente pessoal.


[1] Traduzido da versão original em Inglês de http://rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/frontpage
Cláudia Morais