terça-feira, dezembro 12, 2006

Voice over: a voz sobreposta da subjectividade


À ficção noir, e muito em especial a Raymond Chandler e a James M. Cain, mais do que a Dashiell Hammett, vai o film noir buscar aquele que é um dos seus mais importantes instrumentos narrativos: a voz de uma personagem que, numa primeira pessoa explícita e de presença sistemática, se responsabiliza pelo acto de narração. Emergindo no presente narrativo e sobrepondo-se às imagens que, pelo recurso ao flashback, vão contando o passado traumático da personagem, esta é a voz que conduz o espectador em algumas das obras mais relevantes do noir: a de Fred MacMurray em Double Indemnity, a de Robert Mitchum em Out of the Past, a de Dick Powell em Murder, My Sweet, a de Orson Welles em The Lady From Shanghai, ou a de John Garfield em The Postman Always Rings Twice.

Nesta matéria como noutras o noir é devedor do génio de Welles. Com efeito, é em Citizen Kane que, pela primeira vez na história do cinema, se leva esta estratégia narrativa ao seu pleno desenvolvimento, pelo recurso a uma pluralidade de vozes e de pontos de vista que buscam a definição da figura do protagonista, Charles Foster Kane. É essa pluralidade que permite iluminar uma tensão radical entre o ponto de vista individual e a realidade, que irá tornar-se um dos traços mais marcantes do film noir.

Em filmes como The Killers e Sorry, Wrong Number, as vozes narrativas são, como no filme de Welles, distintas e contraditórias. Articulam-se e confrontam-se numa multiplicidade que parece configurar uma luta pelo controlo da narração, ao mesmo tempo que indicia o carácter indefinível e subjectivo da verdade. Pelo contrário, filmes como Double Indemnity, The Postman Always Rings Twice e The Lady From Shanghai confrontam o espectador com uma voz única e envolvente, que quase sempre se impõe desde os primeiros planos, funciona como fonte exclusiva de tudo o que vemos e orienta o acesso privilegiado a um mundo interior intensamente dilacerado pela memória, o desejo e a repressão.

Em qualquer dos casos, porém, seja apenas de uma voz ou de várias que dependa o fluir da narração, o discurso do film noir transporta sempre as marcas de uma subjectividade em acção, um eu cujo objectivo mais imediato e mais premente consiste em produzir uma visão pessoal e única da realidade. Ao contrário do que sucede no modelo realista clássico do cinema americano, a narração do noir nunca esconde a origem concreta, limitada e subjectiva do ponto de vista adoptado, fazendo desta subjectividade ostensivamente assumida uma das componentes mais determinantes e mais ricas da sua plasticidade formal e da sua complexidade temática.
Mesmo quando é única e a sua narração não é, portanto, sujeita a um confronto com outras perspectivas complementares ou contraditórias, a voz sobreposta não significa necessariamente uma âncora da narração, um elemento fixo e estável que se estabeleça como contraponto à mobilidade e à instabilidade próprias da intriga do noir. Em Laura, por exemplo, a voz de Waldo Lydecker, amaneirada, obsessiva e cínica, centra o seu relato na personagem que dá o título ao filme e que se presume ter sido assassinada no seu próprio apartamento. O regresso inesperado de Laura permitirá descobrir que a instabilidade e o desequilíbrio da história se localizavam afinal, desde o início, na personagem que parecia instituir-se no guia do espectador em busca dos sentidos do filme.

Sunset Boulevard leva às últimas consequências a estratégia da instabilidade e da perturbação associadas à voz de um narrador único: Joe Gillis está já morto e o espectador vê-o, logo no início do filme, flutuando de rosto para baixo na piscina de Norma Desmond, ao mesmo tempo que lhe ouve a voz contar o modo como morrera. Da voz do corpo morto de Gillis emerge o desejo obsessivo e paradoxal de se fazer ouvir quando a própria possibilidade da fala lhe está já interdita. A narrativa que dela se desprende não é mais do que a expressão do desejo profundo e intenso do sujeito de fugir à inevitabilidade da mudez e fazer ouvir uma voz que, mesmo a partir do lugar silencioso da morte, consiga articular uma fala sobre o mundo e dizer da sua verdade subjectiva e única contra o poder letal de uma verdade colectiva hegemónica e supostamente objectiva.

Ao privilegiar esta voz pessoal e a subjectividade declarada que ela transporta e representa, a narrativa noir sublinha, essencialmente, a condição do indivíduo enquanto imagem e medida de uma cultura. Através dos seus narradores, o noir persiste em dar voz ao subjectivo e, ao fazê-lo, articula uma preocupação consistente com o lugar do sujeito na sociedade actual e com a sua necessidade vital de nela se fazer ouvir. Não apesar dessa subjectividade, mas justamente porque a voz que a representa constitui a marca incontornável de uma imprescindível dissidência individual num mundo em que o sombrio pesadelo urbano do presente ocupou o lugar do idílico sonho americano do passado.

Abílio Hernandez