segunda-feira, dezembro 04, 2006

A emergência histórica e crítica do film noir

A origem e o desenvolvimento do film noir estão inequivocamente associados à evolução da sociedade americana e da sua indústria cinematográfica na fase que se seguiu à depressão e, sobretudo, no período da segunda guerra mundial e respectivas sequelas. Quando, em 1946, Nino Frank utilizou pela primeira a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser aceite pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, e em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do ci­nema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e no estilístico. Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon, de John Huston (1941), e Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger, e The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.

Para a generalidade dos críticos o corpus do período clássico do film noir começa justamente com The Maltese Falcon e acaba com Touch of Evil, de Orson Welles (1958). Mas é outro filme de 1941, não incluído no cânone noir – o famoso Citizen Kane, de Welles – que introduz no cinema americano o rebuscamento estilístico e a complexidade narrativa que irão tornar-se duas das marcas identificadoras da categoria. Com Touch of Evil, esse rebuscamento tornar-se-á perversamente excessivo, representando o filme, nesse seu assumido excesso, a degeneração e a morte de um dos herois existenciais mais caros ao noir, o “hard-boiled detective”. O que – facto interessante e poucas vezes salientado – nos deixa esta categoria fílmica histórica e esteticamente situada entre duas obras-primas de Orson Welles. E situado também, na sua fase mais marcante, em duas décadas, a de 40 e a de 50, em que Hollywood passou por um conjunto de experiências particularmente difíceis: a manutenção do Production Code Admninistration, a morte do studio system, a acção repressiva da House Un-American Activities Committee e o advento da televisão. Tudo isto no contexto da experiência da guerra e do conturbado período que se lhe seguiu.

Abílio Hernandez