terça-feira, maio 15, 2007

Night and the City (1950)



“The night is tonight. The city is London” – narrador em Night and the City


Realizado por Jules Dassin, Night and the City (1950) seria o seu último filme a ser produzido com capital norte-americano, visto que dois anos após o seu lançamento, Dassin é apontado na “Caça às Bruxas” por outro realizador e, logo, afastado dessa indústria cinematográfica.

A história centra-se em Harry Fabian, um (ainda) jovem ambicioso que se envolve em apuros pelas razões do costume: dinheiro, ganância e, claro está, mulheres. A sua ambição desmedida de ser bem sucedido, leva-o a recorrer, repetidamente, a empréstimos e a depender do dinheiro para tudo. A título de exemplo, veja-se a “pressa” com que mandou colocar uma placa com o seu nome, intitulando-o de manager, assim que abriu o ginásio de boxe com o dinheiro que Helen e o seu marido, Phil, lhe haviam dado (sempre a troco de algo). Mas todos os esquemas que Harry inventa para obter o que pretende estão longe de serem limpos: a chantagem paira no ar. As dificuldades acrescem, ganham corpo e Harry, não conseguindo lidar com a sepultura que ele próprio cavou, acaba em constante fuga. A saída poderá ser a sua namorada, Mary, o oposto da uma suposta femme fatale que é Helen. Mas ela terá “trocado” Harry por um namoro mais estável e seguro com o seu vizinho. Nada resta a Harry senão a morte.

Enquanto espectadores, o sentimento em relação a Night and the City varia consoante as duas partes em que o filme pode ser dividido. Numa primeira parte, as artimanhas que Harry arranja chegam a ser engraçadas, a tocar o cómico, embora não se nutra qualquer tipo de simpatia por aquela personagem. No entanto, a posição pode mudar abruptamente assim que este noir se torna mais trágico e violento na segunda metade do filme. O que acontece é uma transcendência do género do noir para um drama profundo, onde não há esperança nem porto de abrigo. A face do anti-herói que é Harry, de olhos semi-esbugalhados, com suor e uma expressão de caos, apenas corrobora o sentido dramático-existencialista que Dassin imprime ao filme.

Ainda voltando ao noir: Night and the City abre com uma sequência puramente negra que consiste em Harry a fugir de quem o persegue pelas ruas de Londres (!) by night. E o registo continua quando ele se refugia em casa da sua adorável namorada, Mary. Ela é apresentada como a “outra” mulher para além da femmme fatale, a que pouparia Harry às consequências dos seus actos. Mas ele está demasiado febril de ambição para o ver e, deste modo, se expira a hipótese de salvação. O desespero e o isolamento tão característicos do noir, não deixarão Harry impune.

Dassin mostrou tudo isto apostando numa cidade de Londres labiríntica, enevoada e desorientadora, em planos determinados e ângulos fechados sobre o rosto de Harry, colocando-o numa dolorosa escuridão por entre edifícios ameaçadores que parecem convergir para o sufocar.

Mas, como Mary cantava: “Here’s to tomorrow morning”.


Cláudia Morais

sábado, abril 21, 2007

"They Live By Night"

É num carro a alta velocidade no meio do campo que entramos no universo de "They Live by Night". Adaptado do romance de Edward Anderson, "Thieves Like Us", este primeiro filme de Niholas Ray pode-se considerar como uma entrada suave e sentimental no cânone do noir clássico. No entanto, chega a ser interessante, senão contraditório quanto à forma de filme noir.
Na verdade, as convenções estilísticas estão presentes no contraste luz/sombra, planos fechados ou apertados sugerindo uma certa asfixia, um beco sem saída, nos lugares em atmoferas nocturnas. Contudo, o filme é igualmente caracterizado por elementos não-noir.
Enquanto que outros filmes noir têm como espaço primordial a cidade, aqui encontramos um ambiente rural - a quinta, casa na montanha, as estradas em pleno campo. Ainda assim, observamos um simpático retrato dos dois amantes fora da lei. Porque se a narrativa é estruturada em torno dos três foragidos, o filme acaba por desenvolver de forma coerente o romance entre Keechie e Bowie.
De facto, os casais típicos do noir usam a sua carga sexual para se servirem um do outro (ex: "Double Indemnity"), porém o companheirismo de Keechie e Bowie é terno, cheio de um idealismo romântico frequentemente associado ao melodrama.
Enqunto os protagonistas do noir são vividos, cínicos, Bowie não sabe como falar com uma mulher, apenas quer agarrar a mão de um rapariga no cinema. Apesar se sofrer uma mudança ao longo do filme, Keechie não é sofisticada, nem independente, não é a femme fatale, pelo contrário, é a mulher redentora, é a mulher simples e solitária - a mesma que encontramos em "Out of the Past" - ela não é como as outras raparigas ("I'm not like other girls"), as raparigas do noir.
É a ingenuidade e o desejo de uma vida "normal" que os distancia do casal típico do noir, aproximando-os já de casais presentes nos filmes que se seguiriam.
"They Live By Night" pode ser então considerado um romantic noir, mas também um roadmovie, onde o carro tem um papel fundamental não só como objecto no espaço, mas também com uma poderosa divisão de planos. Na verdade, é o interior do carro que atenua os interiores dominados por restritas delineações de portas, janelas, luz e sombra. O assalto ao banco, de dia, é quase inteiramente filmado pela perspectiva de Bowie na janela do carro.
É desta forma que "They Live By Night"nos remete para filmes ainda do noir, mas também para filmes posteriores, como "Bonnie and Clyde", sugerindo uma mudança, os primeiros passos de um novo cinema que estava para vir.

Anaísa Rato

O sonho quebrado

Considerado como um dos primeiros filmes noir, "The Maltese Falcon" dá forma, através de inúmeros exemplos, a esta expressão que se tornou num género.
Assim, logo na sequência inicial é bem visível o contraste entre a luz e a sombra no gabinete de Sam, mesmo com a luz do dia as sombras provocadas pelos estores estão presentes.
Por outro lado, o quarto de Sam está às escuras somente uma janela mostra a luz do exterior. Ao atender o telefone apenas ouvimos a sua voz, o seu rosto só aparece quando acende a luz do candeeiro.
De facto, são os candeeiros dispostos estrategicamente pelo cenário que dão luz e sombra em cada cena, sendo inserido em cada plano o tecto do apartamento de Sam ou de Brigid, pois é ele que reflecte essa mesma luz e sombra.
Tudo é contrastante no filme, até a música que por vezes é lenta e suave, se torna estridente nos momentos chave da narrativa. Até mesmo o vestuário das personagens reflecte a dualidade luz/sombra, pois todas usam uma peça de roupa clara e outra escura.
Igualmente importantes são os planos usados no filme que, em muito deixam transparecer a personalidade e a situação de cada personagem; como os planos de conjunto, os planos médios e subjectivos. Outro exemplo, é o campo contra-campo, em que no mesmo plano está sempre uma personagem de frente e as outras costas e vice-versa, e sempre de ângulos diferentes; ou até mesmo o plano contra-picado de Gutman no quarto de hotel, mostra todo o seu altruísmo. No entanto, na última sequência do filme todas as personagens são filmadas de igual forma, pois todos estão na mesma situação.
Na verdade, as personagens aparecem-nos facilmente caracterizadas pelos planos e pelo próprio ambiente que as rodeia. Assim, Sam apresenta-se como um homem frio, insensível, arrogante que despreza qualquer intenção de sedução por parte da mulher, neste caso Brigid, mulher sedutora e mentirosa que usa a fragilidade como seu aliado.
Ao longo de uma narrativa fluida, toda a história converge num ponto: o dinheiro, que desperta a ganância desmedida em personagens desde logo condenadas, servindo-se de esquemas e enganos para atingirem objectivos pessoais.
É a verdade e a mentira que juntas constroem as incertezas deste género cinematográfico, são elas as metáforas da luz e da sombra, da noite e do dia, são elas que quebram todo e qualquer sonho que pesa e é feito de chumbo.

Anaísa Rato

quinta-feira, abril 19, 2007

Double Indemnity (1944)

“Common people doing bad things to get what they want”


Por muitos considerado o primeiro noir autêntico, Double Indemnity (1944) possui, de facto, características estéticas e estilísticas mais marcantes quando comparado com o seu antecessor The Maltese Falcon (1941). É com Double Indemnity que o austríaco Billy Wilder alcança reconhecimento, tendo sido nomeado para 7 Óscares, entre eles Melhor Realizador e Melhor Filme.
A visão desta película é a de um mundo pessimista. Desde os primeiros momentos do filme, com um homem de sobretudo (Neff) a cambalear, sabemos que esta é uma história condenada. E assim que vemos uma pequena mancha de sangue no casaco de Neff e ouvimos da sua boca uma confissão ofegante, temos a confirmação necessária. “I killed him for money… and for a woman. I didn’t get the money. And I didn’t get the woman.” – deste modo se inicia o longo flashback que constitui todo o filme. É com a voz over de Neff, cansada e em sufoco pelo esforço de falar com uma bala alojada no peito, que somos guiados na sua subjectividade.
Neff e Phyllis conhecem-se, interessam-se um pelo outro, “interessam-se” em seguros de vida e ao terceiro encontro decidem matar o marido de Phyllis. Será por dinheiro? Por amor? Ou porque vivem ambos aborrecidos das vidas que levam? Não se sabe ao certo. As primeiras hipóteses são meros ensaios de resposta às perguntas pois apenas isso nos é permitido retirar desta intriga.
Largando o arquétipo do hard-boiled detective que Boggart implementou, Neff é uma personagem fraca que se deixa enganar pelos lindos olhos de Phyllis. Ambos partilham uma certa frieza que os faz personagens por quem é pouco provável nutrir-se qualquer sentimento. O espectador queda-se praticamente neutro quando Keys, patrão e figura paterna de Neff, está na eminência de desvendar o crime. Talvez sintamos o medo do desapontamento que Keys irá sofrer se descobrir a verdade. Ainda que os protagonistas sejam, aos nossos olhos, personagens “desumanas”, existe um fundo pleno de outras mais humanas. Keys é, claro está, uma delas. E talvez Lola, a enteada de Phyllis, preocupada e receosa, também possa fazer parte desse leque. Serão estas as personagens “pilar-moral” que acompanham Neff e Phyllis.
Talvez impelidos mais pela “vontade” de cometerem um crime do que por qualquer outra razão, o par de protagonistas cai na rede de Wilder. Como Roger Ebert afirma “Ele [Wilder] não está interessado nas mesmas coisas que interessam às personagens. Pretende saber o que lhes acontece depois de fazerem aquilo que pensam ser tão importante. Ele não quer verdade mas consequências.”
[1] E é justamente isso que nos mostra. Os motivos que os levaram a cometer o crime pouco importam. Importa sim o modo como reagem ao resultado dos seus actos, aqueles pequenos detalhes que, na ânsia de cumprir um objectivo, foram ignorados e que agora tomam proporções gigantescas pondo em risco todo o plano.
Então, assistimos à queda de ambas as personagens, vemo-las sofrer as consequências, o modo como se tentam defender, escapulir à verdade, esconder, ver como o remorso as consome e a moral fala mais alto, como o medo é instalado. Possivelmente será esse sofrimento a única forma de os converter, no final do filme, em seres de “sangue quente”. Ainda assim, Neff ganha densidade e complexidade pela relação que estabelece com o seu patrão, Keys. O sentimento mais genuíno em todo o filme é o da relação de ambos, uma relação pai-filho, com uma figura paternal exigente e dura, mas profundamente terna. No outro extremo, a relação amorosa de Phyllis com Neff é fria, sem qualquer manifestação de carinho. É uma relação utilitária que apenas serve um propósito.
Ainda que não vejamos claramente a cidade como elemento labiríntico e “típico” do noir, esse elemento é engenhosamente substituído pelo amplo espaço ocupado por secretárias dos escritórios da companhia onde Neff trabalha. Mesas de madeira alinhadas criam corredores, como se de ruas se tratasse. De facto, as imagens do exterior são escassas em detrimento dos espaços interiores, onde se localiza a grande parte da acção. Aí existe um estudo detalhado da projecção de sombras, do contraste e dos jogos de luz que vão criando ambientes em tudo apropriados a cada situação. O exemplo mais notório é o de uma das cenas finais da película (Neff e Phyllis encontram-se ambos em casa de Phyllis) em que alongadas sombras correspondentes às persianas entreabertas das janelas se projectam na face dos protagonistas, criando a ilusão de estarem aprisionados por detrás de grades.
Ainda que baseado num romance de James M. Cain, Wilder, também como argumentista de Double Indemnity, aprimorou os diálogos e fez deles pequenas preciosidades que balançam entre o mordaz e irónico e o altamente sugestivo.

NEFF
Why didn't you shoot, baby?


Phyllis puts her arms around him in complete surrender.


NEFF
Don't tell me it's because you've been in love with me all this time.


PHYLLIS
No. I never loved you, Walter. Not you, or anybody else. I'm rotten to the heart. I used you, just as you said. That's all you ever meant to me -- until a minute ago. I didn't think anything like that could ever happen to me.


NEFF
I'm sorry, baby. I'm not buying.


PHYLLIS
I'm not asking you to buy. Just hold me close.


Neff draws her close to him. She reaches up to his face andkisses him on the lips. As she comes out of the kiss thereis realization in her eyes that this is the final moment.


NEFF
Goodbye, baby.


Out of the shot the gun explodes once, twice. Phyllis quiversin his arms. Her eyes fill with tears. Her head falls limpagainst his shoulder. Slowly he lifts her and carries her tothe davenport. He lays her down on it carefully, almosttenderly. The moonlight coming in at the French doors shineson the anklet. He looks at it for the last time and slowlyturns away. As he does so, he puts his hand inside his coatand it comes out with blood on it. Only then is it apparentthat Phyllis' shot actually did hit him. He looks at theblood on his fingers with a dazed expression and quicklygoes out of the room, the way he came.


A “Santa Trindade” Assassínio-Traição-Destruição do noir afirma-se definitivamente com Double Indemnity. Outro elemento a seu favor é o facto de não se fixar apenas no enredo, na acção com um princípio, meio e fim, na manipulação fácil de personagens planas. Wilder atribui valor às relações humanas que a intriga cria e isso é uma proposta menos niilista quando comparada com outros filmes desta mesma categoria.
Por tudo o que foi referido (e por tudo o que ainda falta referir), afirmar que Double Indemnity é o noir mais noir da História do Cinema deixou já de ser uma opinião meramente pessoal.


[1] Traduzido da versão original em Inglês de http://rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/frontpage
Cláudia Morais

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Enganar ou deixar-se enganar?

Quando uma bela mulher se abeira de Sam Spade que não sabe resistir ao género, tudo pode correr mal. E é o que acontece em Maltese Falcon. Ao atender ao pedido de socorro de uma mulher tentadora, o detective perde por momentos a cabeça, ainda que de forma subtil e não tanto perceptiva como o seu colega Miles Archer, que acaba morto, como se o preço da cobiça de uma mulher e de ser um tipo simpático num filme repleto de cinismo e antipatia fossem sete palmos de terra por cima. Quanto a Sam, e a mim, mantém-se durante toda a história jogando pela defensiva, uma vez que cedo percebe o quanto é enganado por uma mulher que mesmo aparentando insegurança, medo e nervosismo, tenta passar-lhe a perna até ao fim. Joel Cairo, uma personagem um pouco alienada, chega mesmo a acusá-la de usar o corpo para conseguir o que quer, e o espectador poderá mesmo colocar a pureza desta mulher em dúvida atendendo às histórias, sempre mentiras, que vai inventando, para conseguir a ajuda do cínico detective. Contudo, sendo um detective experiente e inteligente, cedo percebe que Brigit lhe mente e vê-se num rol de mentiras e ladrões dos quais só poderá fugir resolvendo o mistério do falcão. E efectivamente, este detective sai como herói de todo este mistério, mas isso não faz dele boa pessoa, para sair ileso teve de ser tão corrupto como aqueles de quem tentava escapar. Sam chega a um ponto que entra numa corrida, precisa descobrir porque morreu o seu sócio, limpar o seu nome com os polícias, quem é Miss Wonderly, porque é o pássaro tão cobiçado, quem é Joel Cairo e que pretende, qual a sua relação com Gutman, porque está ele próprio metido nisto, e porque estão todos envolvidos. A meta que alcança em todos estes mistérios, que se revelam ser um só, faz dele o mais inteligente e amoral detective da história do crime.

Alexandra Santos

terça-feira, dezembro 12, 2006

"Swell!"



The Maltese Falcon é comummente aceite como sendo o primeiro film noir da história do cinema. É com ele que nasce um paradigma seguido por vários outros realizadores. Ainda hoje podemos ver reminiscências do noir.

Com Boggart, nasce a figura-tipo do detective que procura resolver um caso misterioso, influenciado por uma, ainda que ténue, femme fatale (Mary Astor), aparentemente ingénua mas que acaba por envolvê-lo tanto no caso como com ela. Eventualmente chegar-se-á a uma traição e a um ajuste de contas final que deixará o espectador respirar, finalmente, de alívio. No entanto, até então, nunca nenhum filme mostrara tão explicitamente homicídios brutais, tensão sexual, etc. Apesar de dar uma certa continuidade ao filme de gangsters e ao policial, o noir pode ser considerado uma categoria fílmica mais “dura” tanto por aquilo que mostra como pelo que sugere.

Iconograficamente é inovador. De repente, tudo e todos têm uma sombra! A iluminação é feita de modo a que longas sombras, tanto de objectos como de pessoas, sejam projectadas, o chiaroscuro é implementado. Os ângulos da câmara variam bastante mais, havendo alguma preferência pelos picados e contra-picados. Também temos exemplo de um plano subjectivo de Sam Spade.

Em termos de texto, os diálogos, sem floreados, incisivos, por vezes de duplo sentido, quase se sobrepõem uns aos outros a um ritmo vertiginoso.

Baseado numa obra de Dashiel Hammet, The Maltese Falcon não distingue claramente o bem do mal, como se do antagonismo entre o negro e o branco surgisse, muito simplesmente, o cinzento.

No entanto, a voz-over é ainda inexistente e a femme fatale, afinal, necessita de maior projecção.

Cláudia Morais

Voice over: a voz sobreposta da subjectividade


À ficção noir, e muito em especial a Raymond Chandler e a James M. Cain, mais do que a Dashiell Hammett, vai o film noir buscar aquele que é um dos seus mais importantes instrumentos narrativos: a voz de uma personagem que, numa primeira pessoa explícita e de presença sistemática, se responsabiliza pelo acto de narração. Emergindo no presente narrativo e sobrepondo-se às imagens que, pelo recurso ao flashback, vão contando o passado traumático da personagem, esta é a voz que conduz o espectador em algumas das obras mais relevantes do noir: a de Fred MacMurray em Double Indemnity, a de Robert Mitchum em Out of the Past, a de Dick Powell em Murder, My Sweet, a de Orson Welles em The Lady From Shanghai, ou a de John Garfield em The Postman Always Rings Twice.

Nesta matéria como noutras o noir é devedor do génio de Welles. Com efeito, é em Citizen Kane que, pela primeira vez na história do cinema, se leva esta estratégia narrativa ao seu pleno desenvolvimento, pelo recurso a uma pluralidade de vozes e de pontos de vista que buscam a definição da figura do protagonista, Charles Foster Kane. É essa pluralidade que permite iluminar uma tensão radical entre o ponto de vista individual e a realidade, que irá tornar-se um dos traços mais marcantes do film noir.

Em filmes como The Killers e Sorry, Wrong Number, as vozes narrativas são, como no filme de Welles, distintas e contraditórias. Articulam-se e confrontam-se numa multiplicidade que parece configurar uma luta pelo controlo da narração, ao mesmo tempo que indicia o carácter indefinível e subjectivo da verdade. Pelo contrário, filmes como Double Indemnity, The Postman Always Rings Twice e The Lady From Shanghai confrontam o espectador com uma voz única e envolvente, que quase sempre se impõe desde os primeiros planos, funciona como fonte exclusiva de tudo o que vemos e orienta o acesso privilegiado a um mundo interior intensamente dilacerado pela memória, o desejo e a repressão.

Em qualquer dos casos, porém, seja apenas de uma voz ou de várias que dependa o fluir da narração, o discurso do film noir transporta sempre as marcas de uma subjectividade em acção, um eu cujo objectivo mais imediato e mais premente consiste em produzir uma visão pessoal e única da realidade. Ao contrário do que sucede no modelo realista clássico do cinema americano, a narração do noir nunca esconde a origem concreta, limitada e subjectiva do ponto de vista adoptado, fazendo desta subjectividade ostensivamente assumida uma das componentes mais determinantes e mais ricas da sua plasticidade formal e da sua complexidade temática.
Mesmo quando é única e a sua narração não é, portanto, sujeita a um confronto com outras perspectivas complementares ou contraditórias, a voz sobreposta não significa necessariamente uma âncora da narração, um elemento fixo e estável que se estabeleça como contraponto à mobilidade e à instabilidade próprias da intriga do noir. Em Laura, por exemplo, a voz de Waldo Lydecker, amaneirada, obsessiva e cínica, centra o seu relato na personagem que dá o título ao filme e que se presume ter sido assassinada no seu próprio apartamento. O regresso inesperado de Laura permitirá descobrir que a instabilidade e o desequilíbrio da história se localizavam afinal, desde o início, na personagem que parecia instituir-se no guia do espectador em busca dos sentidos do filme.

Sunset Boulevard leva às últimas consequências a estratégia da instabilidade e da perturbação associadas à voz de um narrador único: Joe Gillis está já morto e o espectador vê-o, logo no início do filme, flutuando de rosto para baixo na piscina de Norma Desmond, ao mesmo tempo que lhe ouve a voz contar o modo como morrera. Da voz do corpo morto de Gillis emerge o desejo obsessivo e paradoxal de se fazer ouvir quando a própria possibilidade da fala lhe está já interdita. A narrativa que dela se desprende não é mais do que a expressão do desejo profundo e intenso do sujeito de fugir à inevitabilidade da mudez e fazer ouvir uma voz que, mesmo a partir do lugar silencioso da morte, consiga articular uma fala sobre o mundo e dizer da sua verdade subjectiva e única contra o poder letal de uma verdade colectiva hegemónica e supostamente objectiva.

Ao privilegiar esta voz pessoal e a subjectividade declarada que ela transporta e representa, a narrativa noir sublinha, essencialmente, a condição do indivíduo enquanto imagem e medida de uma cultura. Através dos seus narradores, o noir persiste em dar voz ao subjectivo e, ao fazê-lo, articula uma preocupação consistente com o lugar do sujeito na sociedade actual e com a sua necessidade vital de nela se fazer ouvir. Não apesar dessa subjectividade, mas justamente porque a voz que a representa constitui a marca incontornável de uma imprescindível dissidência individual num mundo em que o sombrio pesadelo urbano do presente ocupou o lugar do idílico sonho americano do passado.

Abílio Hernandez

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Período, estilo ou género? a categorização histórico-estética do noir


Os textos teóricos produzidos ao longo dos anos sobre o film noir têm-se centrado num conjunto de traços considerados essenciais para a identificação desta categoria fílmica. Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito de chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a emergência de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção de uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina do protagonista o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino.

Estruturado por uma teia de ilusões e de embustes que inevitavelmente desembocam na morte, o espaço profundamente problemático e perturbador do film noir encontra na labiríntica sala dos espelhos de The Lady From Shangai (de novo a presença incontornável de Welles) a representação ideal de um mundo assombrado pelos infinitos reflexos de figuras esquivas, ambíguas e dilaceradas. São elas, verdadeiramente, mais do que qualquer outro elemento, que fazem do noir um filme de morte.

Apesar da convergência crítica sobre os aspectos acima enunciados, a controvérsia está sempre presente na discussão do film noir, designadamente quanto à sua classificação como período, estilo ou género. O entendimento do noir como um período específico da história do cinema, balizado pelos anos de 1941 e 1958, foi sendo abandonado à medida que, a partir da segunda metade da década de 60, obras como Harper (Jack Smight, 1966), Point Blank (John Boorman, 1967), Klute (Alan J. Pakula, 1971), Chinatown (Roman Polanski, 1974) ou Farewell, My Lovely (Dick Richards, 1975) recuperavam alguns dos traços mais distintivos da categoria. A continuidade dessas referências e a evolução do seu tratamento fílmico justificam o aparecimento, na crítica cinematográfica, da expressão neo-noir para classificar alguns filmes dos anos 80 e 90, como Blade Runner e Black Rain (Ridley Scott, 1982 e 1989), House of Games (David Mamet, 1987), Reservoir Dogs (Quentin Tarantino, 1992), The Usual Suspects (Bryan Singer, 1995) e Seven (David Fincher, 1975), entre outros.

Por outro lado, o noir não pode ser considerado apenas como um estilo se, por estilo, entendermos o uso repetido e claro de técnicas fílmicas que se tornam características de um grupo de filmes, porque, por si sós, ou mesmo combinados entre si, diversos traços estilísticos identificados com a categoria (o desequilíbrio da composição, o efeito chiaroscuro da iluminação, etc.) não são na verdade exclusivos do noir ou sequer do filme policial.

Do mesmo modo, o conceito de género, entendido como um tipo de filmes que o espectador reconhece pelas suas convenções narrativas familiares, não parece suficientemente maleável para definir um corpus em que a transgressão das fronteiras genéricas assume um carácter mais profundo e mais essencial para a sua compreensão do que aquele que ocorre no western, no musical ou no filme de terror. Será por isso mais rigoroso considerar o noir como uma categoria essencialmente transgenérica, capaz de incluir, no seu vasto e variado cânone, filmes de gangsters como High Sierra (Raoul Walsh, 1941) e The Killers (Robert Siodmak, 1946), melodramas policiais como Mildred Pierce (Michael Curtiz, 1945), histórias de crimes passionais e psicologia criminal como The Postman Always Rings Twice (Tay Garnett, 1946), thrillers com vocação de documentário social como Crossfire (Edward Dmytryk, 1947), e até a negrura de westerns como Pursued (Raoul Walsh, 1947) e Rancho Notorious (Fritz Lang, 1952).

Com esta sua condição essencialmente multímoda e transgenérica, o noir do período clássico entre 1941 e 1958 identifica-se com uma prática fílmica capaz de expor e subverter formas sociais de dominação estruturantes do quotidiano da sociedade americana do pós-guerra, articulando deste modo uma consciência crítica do mundo contemporâneo. Esta perspectiva pressupõe que se veja o noir não tanto como mero efeito das contradições e distorções que atravessam a modernidade em geral e a sociedade americana em particular, mas sobretudo enquanto sintoma de alguns dos respectivos mitos culturais dominantes, manifestado nas próprias contradições e na distorção estilística, discursiva, temática e transgenérica, que estrutura o vasto conjunto de filmes a que atribuímos a classificação de noir.

Abílio Hernandez

A emergência histórica e crítica do film noir

A origem e o desenvolvimento do film noir estão inequivocamente associados à evolução da sociedade americana e da sua indústria cinematográfica na fase que se seguiu à depressão e, sobretudo, no período da segunda guerra mundial e respectivas sequelas. Quando, em 1946, Nino Frank utilizou pela primeira a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser aceite pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, e em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do ci­nema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e no estilístico. Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon, de John Huston (1941), e Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger, e The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.

Para a generalidade dos críticos o corpus do período clássico do film noir começa justamente com The Maltese Falcon e acaba com Touch of Evil, de Orson Welles (1958). Mas é outro filme de 1941, não incluído no cânone noir – o famoso Citizen Kane, de Welles – que introduz no cinema americano o rebuscamento estilístico e a complexidade narrativa que irão tornar-se duas das marcas identificadoras da categoria. Com Touch of Evil, esse rebuscamento tornar-se-á perversamente excessivo, representando o filme, nesse seu assumido excesso, a degeneração e a morte de um dos herois existenciais mais caros ao noir, o “hard-boiled detective”. O que – facto interessante e poucas vezes salientado – nos deixa esta categoria fílmica histórica e esteticamente situada entre duas obras-primas de Orson Welles. E situado também, na sua fase mais marcante, em duas décadas, a de 40 e a de 50, em que Hollywood passou por um conjunto de experiências particularmente difíceis: a manutenção do Production Code Admninistration, a morte do studio system, a acção repressiva da House Un-American Activities Committee e o advento da televisão. Tudo isto no contexto da experiência da guerra e do conturbado período que se lhe seguiu.

Abílio Hernandez

Double Indemnity, de Billy Wilder


Double Indemnity (1944), de Billy Wilder, é, como já foi dito numerosas vezes, um exemplo admirável do filme Noir. É escusado que nos prendamos pois com a enumeração de características em que encaixa preferindo centrar-nos numa: a relação do protagonista, repleta de ansiedade e paranóia, provocada e projectada na figura da mulher.

As primeiras imagens do filme são de uma estrada molhada de Los Angeles, quase deserta nas primeiras horas da manhã, que Walter Neff (Fred MacMurray), um vendedor de seguros tornado assassino, percorre a grande velocidade desrespeitando várias regras básicas do trânsito entrando quase em colisão com outro veículo desavisado. Visivelmente perturbado, e ao que parece ferido, dirige-se ao seu escritório onde contará em flashback os sinuosos caminhos que o levaram até este ponto sem retorno – assim se inaugura o depois típico modelo do herói introspectivo, em desespero, fumando...

A femme fatale, Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), é também muito cedo caracterizada como tal. A primeira visão que temos dela é num plano em contra-picado em que ela aparece envolta apenas numa toalha, apresentando-se assim ao protagonista sem qualquer pudor, pelo contrário, em tom de sedutor desafio. Pelo menos é assim que Walter Neff vê e entende a situação.

É interessante notar que todas as femmes fatales são apresentadas e descritas por homens (quer pelos protagonistas dentro do filme, quer pelos realizadores) que assinalam e projectam nelas, inevitavelmente, os seus receios e desejos. O ponto de vista é sempre o masculino. Não tento com isto pôr em causa a maior ou menor veracidade dos relatos, apenas procuro acertar que elas, as femmes fatales, não são mais uma personagem autónoma do que uma projecção masculina. O despertar da instabilidade acontece no inconsciente da personagem masculina, e a narrativa performa os caminhos abstractos e não lineares da mudança ocorrida. É também a mise-en-scène, os cenários (como a mansão gradeada pela luz que entra pelas persianas que deixa ver o ambiente sujo e claustrofóbico em que vive Mrs. Dietrichson) que metaforicamente a mostram sempre mediada, como predadora enjaulada, que a fecham na categoria ideológica da mulher como figura dos conceitos nela germanos: “desejo” e “morte”.

A mulher é neste filme vista como figura dupla (de resto, esta ideia do duplo joga de forma inteligente com vários elementos ao longo do filme, começando obviamente pelo título). Uma dupla promessa de preenchimento e de eterna danação. No final o impasse é resolvido pela consciência que Walter adquire de que nunca terá Phyllis, nem terá mais nada.

Catarina Maia

THE MALTESE FALCON


O filme começa com uma legenda que conta a história do falcão maltês, enquanto vão surgindo planos do ano de 1941 de São Francisco (Golden Gate Bridge). Depois somos levados pela janela de um escritório que tem escrito “Spade and Archer” até ao detective Spade que enrola um cigarro. A secretária Effie Perine (Lee Patrick) anuncia um novo caso e a mulher fatal, Ruth Wonderly (Mary Astor), que procura a irmã desaparecida e que supostamente está na companhia de Floyd Thursby provavelmente em São Francisco, uma história estranha. E depois os primeiros homicídios. Este é o princípio de uma história em que nada parece o que realmente é e só Spade pode revelar a verdade. É desta forma que entramos no mundo noir deste filme, o mundo do detective particular, da mulher fatal, dos diálogos cortantes e inteligentes.

Em 1941, o mundo estava em Guerra. No mesmo ano, estreava The Maltese Falcon, filme de John Huston, considerado o primeiro filme noir da história do cinema. Porém, não foi um manifesto que lhe conferiu a devida importância histórica e artística mas sim a crítica francesa, que cinco anos após a estreia americana do filme, tomava contacto com uma nova sensibilidade, uma estética que impregnou a produção de filmes B (principalmente filmes policiais) e, mais tarde, até mesmo alguns melodramas classe A.

O filme noir é descendente directo do filme de gangsters dos anos 30, que por sua vez é filho de uma realidade marcada pela crise económica e pelo aparecimento do crime organizado, durante a instituição da Lei Seca, e que imediatamente após a sua revogação intensificou e diversificou as suas actividades. O crime tornou-se um meio rápido de ascensão social. A moral perdia a sua rigidez e desintegrava-se, numa sociedade onde as antigas leis políticas e económicas não garantiam mais um futuro promissor.

O crime surge, nem tanto como o resultado de uma revolta contra as condições de um sistema que marginaliza e oprime, mas como tentativa de preencher vidas tediosas e opacas. A violência é a válvula de escape, o termómetro social, forma que seres embrutecidos encontram para perseguir os seus interesses, reivindicar os seus direitos ou manifestarem a sua inadaptação ao mundo.

Retrato de seu tempo, o filme noir mostra-nos um mundo de luz e sombras, onde a moral e a divisão simplista entre bons e maus cede espaço à decadência e ambiguidade das personagens. Um mundo em que a desilusão e a incerteza se embrenham nos alicerces de uma sociedade, que faz do sucesso uma cultura e do individualismo uma religião.

O filme noir é um estilo, uma maneira de se filmar, nitidamente influenciada pelo Expressionismo alemão, pelo Realismo poético francês e pelo romance policial. Temos a figura do detective duro e solitário que encontra um sentindo para a existência no individualismo e no exercício de sua profissão, sobrevivendo como um pária do mundo exterior, e mantendo uma ilusória sanidade mental às custas da indiferença e do "não envolver-se".

Apesar de o argumento de The Maltese Falcon ser uma adaptação literária (do livro homónimo de Dashiell Hammett) Huston não ficou totalmente limitado pelos detalhes do argumento e filmou algumas cenas fugindo à obra original.

A contrastada fotografia a preto-e-branco, ângulos anti-convencionais, uso recorrente de picados e contra-picados, fontes isoladas de luz, profundidade de campo, o ângulo à altura do olho. Os planos com pouca luz, criativos e descritivos, tornam a fotografia uma das maiores qualidades do filme. Huston usa imagens do tecto como forma de criar imagens de confinamento, e os espaços do filme, excepto nas cenas do hotel e do cais, são quase claustrofóbicos, sugerindo que a investigação de Spade é extremamente limitada.

Muitas vezes são utilizados, de uma forma muito inteligente, ângulos fora do comum para enfatizar a natureza das personagens. Algumas das cenas mais impressionantes tecnicamente são com the Fat Man (Sidney Greenstreet), especialmente a cena em que este explica muito calmamente a história do falcão a Spade enquanto espera que o sonífero que pôs na bebida deste faça efeito. Gutman está sentado enquanto conta a história e a câmara colocada perto do chão mostra-o num plano em contra-picado, para que o seu enorme tamanho preencha todo o ecrã, dominando a cena completamente, investindo-o de uma grande autoridade. A sua enorme barriga cruzada pela corrente de ouro de um relógio de bolso fica marcada na mente, reforçando simbolicamente a enormidade da obscura história e conspiração que cerca o falcão.

Também as cenas que envolvem Brigid (Mary Astor) são visualmente muito significativas, quase todas elas sugerem a prisão: ela aparece com um pijamas às riscas, a mobília no quarto é às riscas e os raios de luz que atravessam as persianas sugerem as grades de uma cela, assim como as grades do elevador no fim do filme.

A ideia que temos neste filme é que Huston trabalhou cuidadosamente cada uma das cenas de forma a que as imagens, a acção e o diálogo se fundissem na perfeição. O realizador não foi menos cuidadoso com o desenvolvimento do filme, que começa lentamente mas que a certo momento ganha velocidade assim que a narrativa se começa a desenrolar. É a incisiva montagem de Huston que aumenta gradualmente a velocidade do filme. Também a banda sonora é utilizada de forma cuidada, completando uma ou outra cena.

Ângela Cristina Menezes

The Maltese Falcon (1941), de John Huston

Considerado como um dos primeiros filmes noir, The Maltese Falcon dá forma, através de inúmeros exemplos, a esta expressão que se tornou num género.

Assim, logo na sequência inicial é bem visível o contraste entre a luz e a sombra no gabinete de Sam, mesmo com a luz do dia as sombras provocadas pelos os estores estão presentes.

Por outro lado, o quarto de Sam está às escuras e somente uma janela mostra a luz do exterior. Ao atender o telefone apenas ouvimos a sua voz, o seu rosto só aparece quando acende a luz do candeeiro.

De facto, são os candeeiros dispostos estrategicamente pelo cenário que dão luz e sombra em cada cena, sendo inserido em cada plano o tecto do apartamento de Sam ou de Brigid, pois é ele que reflecte essa mesma luz e sombra.

Tudo é contrastante no filme, até a música, que por vezes é lenta e suave, se torna estridente nos momentos chave da narrativa. Até mesmo o vestuário das personagens reflecte a dualidade luz/sombra, pois todas usam uma peça de roupa clara e outra escura.

Igualmente importantes são os planos usados no filme que em muito deixam transparecer a personalidade e a situação de cada personagem; como os planos de conjunto, os planos médios e subjectivos. Outro exemplo, é o campo e contra-campo, em que no mesmo plano está sempre uma personagem de frente e as outras de costas e vice-versa, e sempre de ângulos diferentes; ou até mesmo o plano contra-picado de Gutman no quarto de hotel. No entanto, na última sequência do filme todas as personagens são filmadas de igual forma, pois todos estão na mesma situação.

Na verdade, as personagens aparecem-nos facilmente caracterizadas pelos planos e pelo próprio ambiente que as rodeia. Assim, Sam apresenta-se como um homem frio, insensível, arrogante que despreza qualquer intenção de sedução por parte da mulher, neste caso Brigid, mulher sedutora e mentirosa que usa a fragilidade como seu aliado.

Ao longo de uma narrativa fluida, toda a história converge num ponto: o dinheiro, que desperta a ganância desmedida em personagens desde logo condenadas, servindo-se de esquemas e enganos para atingirem objectivos pessoais.

São a verdade e a mentira que juntas constroem as incertezas deste género cinematográfico, são elas as metáforas da luz e da sombra, da noite e do dia, são elas que quebram todo e qualquer sonho que pesa e é feito de chumbo.

Anaísa Rato – Est. Artísticos, 4º Ano

quinta-feira, novembro 02, 2006

Maltese Falcon

maltesefalcon

The stuff dreams are made of


Depois de uma longa ausência, eis-nos de volta.
Desta vez, com um novo curso, o de 2006-2007, que irá tentar levar a cabo a tarefa iniciada pelos colegas do ano passado.
O tema mantém-se, procuraremos assegurar a regularidade que não foi possível na primeira tentativa.

Iremos começar por aquele que é habitualmente considerado o primeiro film noir: The Maltese Falcon (Relíquia Macabra), de John Huston (1941).

Como sempre, todas as participações serão bem-vindas.

Abílio Hernandez Cardoso